terça-feira, 31 de maio de 2016

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Foi há instantes.
Tinha acabado de sair do carro e uma senhora chamou-me. Agarrou-me no braço como a minha avó Clotilde costumava fazer e disse-me:
"Vá dizer aquela rapariga que aquele sítio é bom. Ela está um bocado zangada, mas aquele sítio é bom. Pode ir, por favor?"
Olhei à volta, não vi nenhuma rapariga. Disse-lhe:
"Desculpe, não percebo."
"Aquela rapariga -continuou -, ela é boa rapariga, só está um bocado zangada."
Hesitei, voltei a olhar em volta. Ela continuava a segurar no meu braço exatamente como a minha avó Clotilde fazia quando me queria dizer alguma coisa importante. Algo as aproximava e eu não queria perder esse momento.
Voltei a olhar em volta. Pedi-lhe desculpa e disse-lhe obrigada.
Quando virei a esquina, ela voltou a chamar-me, porque não era por ali, a rapariga estava mais à frente.
Disse-lhe outra vez "obrigada" e continuei.
Tenho muitas dificuldades em fazer diagnósticos de loucura logo assim, no primeiro instante.
Também tenho muitas saudades da minha avó Clotilde.

terça-feira, 3 de maio de 2016

É tarde. (Confissões de uma mãe de um filho único)

Até aqui tinha sido cedo.
O M. era pequeno e continuou pequeno durante muito tempo. A primeira infância é um tempo muito inteiro e muito intenso. Esperava ser uma mãe maior, mas tudo o que sou - corpo, cabeça, coração - foi ocupado por este bebé que agora é um rapaz, cada vez maior, cada vez maior.
O amor não se explica nem se escreve, mas ocupa-nos totalmente. Desde o primeiro momento em que soube que estava grávida, este corpo nunca mais foi só meu.
Nunca pensei ser mãe de um único filho. Dois foi sempre o número mínimo, sendo três o ideal. Mas até agora foi sempre cedo para o segundo. Por razões sentimentais, financeiras, históricas, sociais - sim, isso tudo! Porque a forma como idealizamos e educamos um filho hoje não tem nada a ver com o que era exigido há uns 20 anos atrás.
Foi sempre cedo. E agora, que começo a por a hipótese de ter -finalmente - um segundo filho, é tarde. Durmo mal, acordo de noite com preocupações e cheia de medo. Ao segundo, uma pessoa sabe ao que vai. Sabe que terá de ser com o segundo o que foi com o primeiro - esse, que nos ocupa ainda todo o corpo e coração - e tem medo de falhar. 
É tarde, eu tenho quase quarenta anos. Será tarde para o M. partilhar tudo o que até agora conquistou com um ser muito, muito mais pequeno. Será tarde para partilhar um quarto que até agora foi só dele. Será tarde para partilhar os pais.
Assalta-me de morte o medo que ele deixe de gostar de mim, de o considerar uma espécie de traição, de perguntar: "Porque não te bastei eu?"
O nascimento de um bebé é uma experiência avassaladora, totalmente monopolizadora da mãe nos primeiros tempos. Temo que não seja fácil para ninguém. Também eu sou a irmã mais velha. Os meus três irmãos são maravilhosos mas confesso que a cada um sentia que perdia um pouco dos meus pais. As atenções dividem-se e acredito que tudo em nós se divida também.
Eu sei que todas as "mães-de-muitos" que por aí me estão a ler, falam no milagre da multiplicação. Da multiplicação do amor e de tudo o mais. E talvez seja verdade, mas eu ainda não consigo ver esse ponto de chegada.
O que eu sei é que acordo a meio da noite cheia de medo e penso que talvez seja tarde...