terça-feira, 24 de dezembro de 2013

"Os Enamoramentos", Javier Marías

"É a horrível força do presente, que esmaga o passado tanto quanto o distancia, e que além disso o falseia sem que o passado possa abrir a boca, nem protestar nem contradizê-lo nem refutar-lhe seja o que for."

"Sim, somos todos arremedos de pessoas que quase nunca chegámos a conhecer, de gente que não se aproximou ou passou ao largo na vida daqueles que amamos agora, ou que então se deteve mas se cansou passado um tempo e desapareceu sem deixar rasto ou só a poeirada dos pés que vão fugindo, ou que morreu para aqueles que amamos causando-lhes uma ferida mortal que quase sempre acaba por fechar. Não podemos pretender ser os primeiros, ou os preferidos, somos apenas o que está disponível, os restos, as sobras, os sobreviventes, o que vai ficando, os saldos, e é com esses pouco que se solidificam os maiores amores e se fundam as melhores famílias, é essa a proveniência de nós todos, produto que somos da casualidade e do conformismo, dos descartes e das timidezas e dos fracassos alheios, e ainda assim daríamos às vezes fosse o que fosse para continuarmos junto de quem resgatámos um dia de um sótão ou um leilão, ou que nos coube em sorte num jogo de cartas ou apanhámos nos desperdícios; inverosimilmente conseguimos convencer-nos dos nossos infelizes namoros, e são muitos os que julgam ver a mão do destino no que não é mais que uma briga de aldeia quando o Verão já agoniza..."

 

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